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O Movimento Mobiliza UEG consiste num movimento unificado de professores, estudantes e funcionários técnico-administrativos da Universidade Estadual de Goiás, espontâneo, independente, não institucionalizado, não hierarquizado e que adota como estratégia de atuação a ação direta. Seu objetivo é intervir no processo de construção da UEG com a finalidade de torná-la, de fato, uma universidade pública, gratuita, autônoma e democrática, capaz de cumprir o seu papel enquanto instituição de educação superior, produtora e socializadora de conhecimentos que contribuam para o bem-estar da sociedade goiana, em particular, da sociedade brasileira, em geral, e, quiçá, de toda a humanidade, primando pela qualidade reconhecida social e academicamente.

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sexta-feira, 20 de junho de 2014

Participar para se eliminar: sobre transformação e controle das relações de trabalho tornadas espetáculos de sofrimento para serem acompanhados como distração pelo público que não mereceu participar.





Por: 
Nélio Borges Peres 

§ 1.
Um imperativo caricategórico ou da lei do valor trabalho na contemporaneidade: década de 1920, Estados Unidos, o professor T. Vebler defende que o papel da universidade é formar indivíduos para competir por melhores salários no mercado. O imbróglio. Ano 2014, os intelectuais da Universidade Estadual de Goiás, perfilados em coluna pelo professor H. Reimer, estão estimulados a implantar e manter efetivamente a competição por melhores salários dentro do seu próprio local de trabalho.
Vencido o mês de março de 2014, professores da UEG aguardavam decisão judicial sobre solicitações acerca do seu regime de trabalho em tempo integral. Judicial? Aparentemente é o Departamento Jurídico dessa universidade quem delibera acerca da maior parte das decisões dos gestores. Pedido negado. Abril começa com uma saraivada da reitoria. Pulinhos e salamaleques com conversinhas e cochichos de ladinho. Parece que as coisas estão em ordem. Do jeito que o povo gosta. Professor “precisa” é viver em conflito ad infinitum. “Que se convoquem os jogos, é hora de diversão no trabalho”. No planejamento estratégico, professores são a ameaça a ser contida. “Detenham-nos!”, esta é a ordem do senhor patrão aos subordinados da gestão pública do capital privado.
Maio vem, e com ele a promessa de disputas de auto nível. “Somente entre doutores e pós-doutores”, porque o lattes deles é mais alto do que os dos especialistas e mestres, essa “gente suja”, das quais convém “se distinguir pelo ordenado, quer dizer, mérito”. Mas só “para melhorar o nível”, dizem os comentaristas dos comentários feitos nas reuniões do CsU.
Junho urgente! Professores e diretores de unidades dizem “não” às propostas das “viúvas” e “mucamas” do senhor reitor. “Dizem não?” Sim, dizem não para poderem dizer “sim”, um alegre e feliz “sim”. Um baita sim em forma de “outra proposta” dentro da proposta inicial. Diferente só nuns sentidos, nuns pulinhos, por exemplo: todos os professores devem ter o direito de se humilhar.Por que só os doutores podem mostrar obediência e devoção à imagem sismográfica do Lattes, instrumento de adestramento e que também serve para auferir a docilidade de cada docente?
E no que é que professores e diretores se mobilizam? Na crença de que possuem a tarefa hercúlea de realizar a autonomia universitária. Autonomia? “É”, argumentam entre si e para os outros, “o reitor é que age de um jeito que força a gente a ser autônomo, a buscar outros rumos. Então vamos mostrar para ele que nós também somos capazes de pensar e fazer como ele, só que melhor do que ele, englobando mais gente nesse ritual de farpinhas, intriguinhas e desespero humano”.

§ 2.
As palavras-chave são‘participação’ e ‘eliminação’. O contexto é o de uma situação contínua, de disputas internas, cuja finalidade é dinheiro: um contra o outro e Deus contra todos; do machadiano conflito “pai contra mãe” ou irmão contra irmão (Esaú e Jacó) aos cinematográficos conflitos entre trabalhador empregado x trabalhador desempregado ou, nas versões vivenciadas na UEG, funcionários efetivos x funcionários temporários&professores efetivos x professores efetivos. Não se trata das “ilustradas” competições entre departamentos acadêmicos por mais verba de pesquisa. Trata-se de competição para haver competição. [Não é demais essa ideia? Só quem não tem boa vontade é que não curte. Essa gente séria.]
Um ano depois da greve dos docentes, administrativos e estudantes da UEG, realizada ao longo de pelo menos 50 dias em 2013, revejo algumas conquistas: Plano de Carreira, pagamento das diferenças salariais em atraso, aumento salarial conseguido para professores com titulação de doutor e pós-doutor, obrigatoriedade de efetivar 2/3 dos docentes em regime de dedicação exclusiva.
Pergunto, hoje, sobre o que estamos fazendo quando estamos no trabalho.O governo não cumpriu o acordo assinado para levar ao fim dos impasses que mantinham a greve. A reitoria personifica as demandas dos grevistas como ações altruístas dos professores que ocupam funções de gestão naquela instância. Em meio a uma cultura de mando, onde muitos intelectuais gozam de tremores pela autoridade do “sabe com quem você está falando?”, é difícil conviver com o próprio entendimento. No limite das circunstâncias em que são praticados atos de reestruturação produtiva, junto ao Plano de Carreira dos docentes, ao Regime de Trabalho e nos currículos de todos os cursos, em especial os que formam professores, ameaça para a ordem tecnocrática da Universidade Estadual de Goiás, interrogo sobre o que tem levado as intenções dos nossos intelectuais a se disporem a compor regulamentos derivados das experiência dos outros, e não das nossas experiências em comum, para definir uma situação em que relações humanas são tornadas efetivamente relações de competição entre coisas, concorrentes, participantes, com mérito definido por números distribuídos em escalas grafadas num sismógrafo.
Os critérios de classificação, de participação e de eliminação são exercitados como se fossem verdadeiros valores humanos e não um mero mecanismo de controle do tempo de cada indivíduo que trabalha na docência. Em exercício efetivo de suas funções, professores e diretores das unidades da UEG dedicam a força de suas energias para comporem roteiros para os “rituais de sofrimento” criados para eles, como híbridos, para realizarem experiências de reestruturação produtiva,exatamente em locais sem nenhuma tradição liberal e historicamente autoritários.
“Realizar alguns reparos” dizem uns, “consertar um erro” comentam outros, “ajustar à demanda do mercado” concordam entre si a maioria. E se dispõem a girar mais uma volta no parafuso de porca espanada.
O que passo a esboçar aqui é uma tentativa de meditar acerca da realização de “rituais de sofrimento”, tal o esboçado por Silvia Viana , no contexto da crítica sobre as teorias do capital humano. A escrita e o conteúdo, pouco ou nada acadêmicos, tenta equivaler-se à brutalidade que o gerou. Por isso, precisa de uma forma brutalizada e de um conteúdo que revele o embrutecimento para dar a conotação da real disposição e consciência dos “participantes” envolvidos na elaboração dos roteiros interpretados por profissionais, que se dedicam a serem cada vez mais atores do que agentes – muitos dos quais acreditam realmente que a realidade consiste na qualidade das atuações e não na materialidade que os determinam a sentir vontade de representar seus papeis.
§ 3.
No final do século 20, a ‘era Thatcher’ ou da “dama de ferro”, comoficou conhecida à época da reestruturação produtiva e da falência dos regimes de “bem estar social” na Europa, durante os anos 70-80, se popularizou através do cinema estadunidense, com o gênero terror. Tornou-se cultura de massa a reestruturação produtiva como representação ‘diabólica’ de gestores à solta, sem leisnem territóriosque pudessem resistir às suas experiências e controlar suas intenções.
Neste gênero de filme a personagem principal representa o male possui um único e sinistro objetivo: eliminar pessoas. No fim, os malvados são detidos por alguma força que acomete um ou dois participantes que “vencem” a disputa, e dão entender que o perigo passou; que pessoas foram eliminadas, mas que o importante foi terem sobrevivido ao terror.
Que relação tem este gênero de filmes com a vida prática do espectador? A eliminação de pessoas, nominadas nesse processo de ‘competidores’ ou ‘participantes’.Tratava-se do gestor encarregado de por em prática os planos de ajuste de condutas estampados no modelo de reestruturação produtiva, o que levou ao fim do idolatrado modelo de ‘bem estar’ social.
Na indústria automobilística dos EUA, por exemplo, é sabido que o modo como a reestruturação produtiva foi interpretada e adotada pelas empresas e trabalhadores, sob a supervisão dos gestores, acarretou nacrença de se praticar a ‘substituição’ do trabalho humano por máquinas. Acontece que à época, lá no norte [deles], isto representou eliminar pessoas do mercado de trabalho, considerado um “jogo”. Equivalente a dizer eliminado do modo de vida classificado como “bom”. Espaços públicos são transformados em privados ao golpe de canetas, ocorre arealocação dos lugares, das durações, dos sentidos da vida que foi tornada emprego. Era a vida dançando ao som de ruídos, buchichos e consolos, para não falar de aumento nos índices de suicídio importados juntamente com os métodos do toyotismo.
Desnecessário dizer que, no Brasil, isto chegou nos anos 90, como uma fórmula (quem lembra do ISO-9mil) para consertar os defeitos do modelo que sequer havíamos tido um dia, o do ‘bem estar social’. No agronegócio, o “urso branco” chegou à região cafeeira do Alto Paranaíba, no Triangulo Mineiro, para ser operacionalizado por um único funcionário, que de dentro da colhedeira conseguia realizar o serviço de 100 boias-frias ao longo de um dia de trabalho. Entre 1994 e 1998, uma fazenda de café que empregava 5 mil trabalhadores na colheita passou a empregar apenas mil. Na educação, a conversa gravita sobre formação qualificada de mão-de-obra para atender demanda de mercado exigido pelo Banco Mundial. Entre 2004 e 2010, só na cidade de Goiânia, foram criadas dúzias de cursos superiores em faculdades isoladas que brotam até hoje com dinheiro regado pela OVG, como padrão de vida urbana.São, na maioria cursos, para formação de pedagogos e administradores de empresas, operadores técnicos do direito e trabalhadores braçais a serviço da medicina dos médicos que atendem para a saúde das empresas.
O negócio é formar uma sociedade com visão de mundo equivalente à visão de mercado. Nesse negócio, o papel das universidades, além de ser o de chancelar diplomas oferecidos nas “lojas” de certificados de educação superior, o de ‘guiar’ a transformação da sociedade civil numa sociedade comercial. Nessa onda, professores e outros profissionais especializados, em geral, são formados para enxergarem a realidade como comerciantes em busca de oportunidades de venda de serviços, equivalente à venda do tempo de vida útil do seu corpo, para quem o possa pagar.
O público, em geral, assiste ao espetáculo e quer participar da eliminação de competidores dos programas de “bem estar social”, elaborados para tornar a vida e as pessoas “melhor”. Estratégia publicitária de entreter o público em geral com personagens de mentira. Enquanto fora dos cinemas, os “donos do poder”, personagens de verdade, representam as vontades da santíssima trindade, FMI, BIRD & OTAN,pagavam especialistas em Recursos Humanos para reelaborarem os roteiros dos atores sociais. “Pagavam” os roteiristas para escreverem como e quais competidores seriam eliminados da competição: por melhores salários, cargos, para poderem se sentir fazendo parte do mundo composto para eles teremde representar, cada um, os papeis sociais criados para atores sociais representarem. Joãos e Marias danaram a crer que são ou devem ser o que os roteiros dizem para ser. Acreditam no que quiseram que acreditassem, inclusive, que possuem vontade própria e liberdade de escolha.
Do mesmo modo como as novelas, os “senhores” dos grilhões da economia bancavam roteiristas para estudar a reação do público em geral com os capítulos exibidos [história como narratologia] e para mudarem o script, as falas, as personagens, de acordo com o consumidor. Em síntese [no modelo que criticamos não existe síntese, não existe História, existem apenas carretas de dúzias de narrativas enviesadas por toneladas de outras narrativas que compõem as crônicas cotidianas, que são o que as pessoas contam de si mesmas no dia dia]: na vida real, o espectador sabia-se personagem de uma tragédia moderna; seu terror real era sabido porque de antemão sabia-se da existência de um mundo vivido como representação das vontades e que, nesse mundo, cada indivíduo é um competidor que deve realizar [e bem] seu papel, que é competir e ter lucro no final: sofrer, só é permitido se for por incompetência pessoal. Ninguém te agride, a não ser seus próprio atos. O que significa, no quadro geral, não ser eliminado pelo ‘chefe’, pelo gestor que pode acionar luzes vermelhas, amarelas e verdes para avisar aos trabalhadores quando parar, quando ficar atento às demandas do mercado e à necessidade de parar e quando se deve acelerar a produção [Mensagem do1º Evangelho Toyotista, graças a Deus! E ao Spectremantambém].

§ 4.
Notemos alguns instantes da relação entre filmes do gênero terror e o modo de vida corporativo determinado pela gestão das grandes empresas. Nofilme de terror, Sexta-feira 13, o protagonista que representa o mal é dado a ver pelo públicona personagem Jason. Ele aparece o tempo todo no filme e os enredos da série de longas metragens são dedicados a ele: mostra-lo em ação, eliminando jovens e adultos [crianças não – há nisto um teor de seleção, que na gramática orgiásticado discurso empresarial soa em tom de valor moral aos ouvidos dos erreagás].
Trata-se de um personagem com características de psicopata e “morto-vivo”.Tem a função de eliminar participantes [de uma colônia de férias ou de algum passeio]. O ‘morto-vivo’ é um zumbi, que não compartilha valores nem intenções que os seres vivos em relação às experiências de vida. Além disso, age mecanicamente, como autômato ou como um “imbecil”, que “elimina sem pensar”, como dirá recentemente a personagem Fred, de A Hora do Pesadelo, sobre o ‘rival’ fílmico Jason.
Noutro filme clássico,O Massacre da Serra Elétrica, uma empresa familiarrepresentaos psicopatas que protagonizam o mal. São igualmente visíveis, apesar de permanecerem à espreita para dar o ar de medo à película. Chamo atenção para um vovozinho semi-morto-vivo,que aparece quase no final. Ele está seguro pela cadeira onde está sentadoe é estimulado pelos netinhos a eliminar uma mocinha, usando para isso um martelo, que sua própria mão não consegue segurar [a cena é grotesca, mas também hilariantemente bizarra; vale a pena conferir hoje em dia].
Novamente, o desejo inexplicável de matar.Mas neste filme as vítimas são comidas como refeição pelos psicopatas que, ao contrário da média geral, não desperdiçam as carnes de suas presas, come-as como bons canibais. E em A Hora do Pesadelo o mal vem no sono, dos sonhos, é proibido sonhar, senão o gestor te pega, digo, Fred te pega.
Estes três clássicos do gênero fílmico do terror deixam didaticamente claro que ao final de tanta eliminação, aflição, angústia, medo, dor, sofrimento, havia sempre um ‘vencedor’, um sobrevivente, alguém que, diante da situação vivida, poderia dizer de si para si: “sobrevivi”, “sou um vencedor”; não porque tenha ganhado alguma coisa, mas simplesmente por não ter perdido a única coisa que realmente teria na vida: o corpo, no tempo [este, o tempo de vida útil, mais ou menos dos 8 aos 70 anos de idade, é o que é vendido e explorado na atual fase do desenvolvimento do capitalismo].
Estes filmes podem ser classificados hoje em dia como ‘horror’, já que perderam todo o charme aterrorizador de então [se é que tiveram mesmo, pois minha idade não me permitiu assisti-los quando foram lançados]. Mas marcaram época. Especialmente pelo que eles trazem em comum: a presença inexorável de um protagonista com o papel de eliminar participantes, competidores, sonhadores.
Os malvados são dados a ver nesses filmes, eles e suas ações são visíveis a todos. Todos aprendem como funciona o jogo de competição pela sobrevivência do mais forte em A Hora do Pesadelo: sonhar é para os fracos; para os fortes, só se for acordado, pois se dormir,o sonho vira pesadelo.

§ 5.
É na esteira ligada pela socióloga Silvia Viana (FGV-SP) que encontramos a chave de leitura para entender a crítica ao enredo da peça que está sendo pregada agora, em todos nós, na UEG e noutras ‘praças’. Viana convida o leitor de sua tese a olhar para a realidade como um show de horrores praticado na forma de “rituais de sofrimento”. Atitudes corporativas que consistem em qualificar os indivíduos pelo mérito, que corresponde a números que aparecem numa tabela de pontuação do vigia lattes: meritocracia, ou regime de classificação daqueles profissionais que mostram ter capacidade de sofrer humilhação e privação dos sentidos. Os mais aptos vencem. Os menos aptos são levados ao “paredão” ou pressionados para pedir exoneração [“pede pra sair, pede pra sair” em tom de “ah, que pena, não sai não, você é tão importante pra nós!”].
Nos filmes de terror do século 21, como Jogos Mortais (1, 2...7), o mal não se dá mais a ver, não pode mais ser contemplado em ação pelos participantes, a não ser pelos espectadores. Ele, o protagonista do mal, praticamente não existe nessa série de terror. O que existe é a “inocência” punida pela realidade fatal do mundo tornado corporação, da vida tornada emprego.
São as personagens que, não tendo tido a intenção de “jogar”, começam aparticipar justamente quando despertamsedadas e são informadas, por uma voz em off, que estão em um jogo, e precisam jogar.O que o espectador vê do mal são tentativas de deixar claro, para cada competidor, o quanto eles merecem estar ali; que as circunstâncias da vida de cada um é que os teria levado àquela situação, da qual eles precisam dar conta de responder. Tal qual acontece nos processos seletivos internos da UEG, que servem para dizer que “você é um merda” e não será classificado entre os que são menos merda que você, porque já tomaram banho de perfume no lattes.
A mensagem que talvez seja mais interessante de se notar neste momento é de uma violência que está longe de ser “apenas” simbólica ou uma “bananalidade”, porque guarda em si a materialidade em seu traço ritualístico, e possui bastante significado para seus cultuadores e suas vítimas. Quem toma remédio farmacológico? Alguém sofre de dores na garganta ou de LER causadas pelo excesso de esforço no trabalho em tempo real? Para que servem as ginásticas laborais mesmo? Ah, sim, dentre outras coisas, tudo isso revela que, na verdade, o trabalho é bastante material e compromete sim o corpo, a saúde e a vida de quem trabalha.
Alguém nega sensações físicas desagradáveis experimentadas ao se lembrar da forma como é sugerido viver no mundo corporativo? Ter de respeitar pessoas que nos pedem ou maquiavelicamente sugerem para que façamos ou que outras pessoas façam coisas que não são respeitáveis.Respeitar quem pede para fazer coisas que não são respeitáveis.
Nem o espectador que assiste agoniado à película sabe qual é a cara, a cor, a forma de quem pratica o mal, a voz em off. Tem-se ali um jogo de sensações, de emoções, enredados pela intriga, pelo ódio, e um boneco de ventríloquo, sumariamente bizarro, que lembra muito a “primeira tese sobre História” de Walter Benjamin. Sabe-se que há o mal: mas onde foram parar os sentidos desse mal, como eles se perderam do próprio mal? A figura diabólica desaparece da cena, mas para preenche-la de todo mal, não só no filme, mas também na percepção da realidade de quem a estiver assistindo mais do que vivendo.
No passado recente, os participantes iam deliberadamente a um lugar onde seriam eliminados, até que sobrevivesse um, o “vencedor”.Os filmes da sérieJogos Mortaisseguem a esteira da linha de montagem da configuração contemporânea da cultura capitalista: os indivíduos, no mundo, são participantes, agora tornados competidores, conscientes de que não pediram para participar, mas estão ali, e precisam mostrar do que são capazes de fazer ao outro para poderem mostrar seu valor, sua capacidade de “superar” limites e obstáculos.
Limites são os da humana condição, obstáculos são os humanos que insistem em tratamentos humanos para problemas humanos concretos, que insistem em fazer ser compatível aquilo que é feito e o que é dito a respeito do que é feito. A própria formação é um obstáculo que deve ser superado. Competir por salário é o fim; isso significa dizer “danem-se os meios”? São vários os que são levados a crer que ‘existe’ uma forma de sociedade humana melhor do que outras, determinada pela competição, que faz da competição lazer e distração para homens que, além de bater em mulheres, idosos e crianças, agora também podemacompanhar o espancamento de estudantes e trabalhadores em geral que discordem das determinações da vida advindas de posicionamentos masculinizados, brancos, heterossexual, adulto e empresarial. Assistir outras pessoas “se eliminando”, “se mantando” para realizar os roteiros improvisados a cada ‘desejo’, que os distraiam, não apenas nos filmes, mas nos noticiários dos jornais, nos reality-shows, na própria vida pessoal, tornada emprego com cronograma, metas, obstáculos, e isto em casa, no trabalho. Afinal, todos os limites daquilo que um dia se chamou “decência” ou “ordem” precisam ser superados hoje em dia. É a questão à qual se volta depois de uma volta a mais no parafuso espanado da ordem disciplinar tecnocrática. Um singelo comportamento inclinado a intenções derivadas de experiências do passado surte efeito moral e é tido como ironia, afronta, coisa de anormal e dado subversivo que deve ser contido dentro desta “nova” ordem mundial dos parafusos frouxos.
Do mesmo modo como em nossas vidas não pedimos nem nos inscrevemos para participar de jogos de eliminação promovidos pelos técnicos apaixonados em gestão de erreagás, somos o tempo todo impelidos a criar situações de competição, e ai de quem se recusar a participar disso em meio à empolgação dos superiores e dos colegas de ‘empresa’.
Isso acontece desde a infância e está cada vez mais impregnado pela ordem discursiva empresarial, que denota comércio em todas as palavras, gestos, ruídos etc. trata-se de uma linguagem que diz o trabalho e a vida fora do trabalho para o “homem-que-trabalha”. Outra estratégia que culpabiliza o próprio indivíduo:“Não existe o outro que compete comigo”, diria de si para si o participante do jogo do “sistema homo-lattes”: “existe apenas eu, diante de mim mesmo, através do que os gráficos dizem que eu faço. Os números denotam quem sou. E eu concordo com isso quando participo com um cisco de empolgação e fé”. O ‘eu’ de cada um foi tornado o maior e mais perigoso adversário de ‘si mesmo’. “Se ganho, ganho é porque não perdi de mim, não me perdi, logo, não estou perdido diante dos olhares que deitam e me olham deitados”.
Também roteiros de conduta social e profissional, redigidos pelos técnicos em esvaziamento da humanidade dos homens e das mulheres (erreagás), são improvisados. Não se paga mais um roteirista que seja especializado em roteiros. Cada um que se vire, pois ninguém nasceu caixa. Invista na imagem pessoal. Faça “boas” amizades [não precisa de emoções, isto se sente no banheiro, “boas” amizades significa manter relações com pessoas com as quais você não compartilha emoções e intimidades, que não denotam envolvimento nem estabilidade, o que exigiria tempo na busca constante de equilíbrio entre as diferenças]. O que quer dizer envolver-se com as pessoas “certas”, que estão “ligadas” no tempo presente da realidade projetada como um filme pelo mercado.
As novas tecnologias também mudam o serviço dos erreagás, que podem se esvaziar mais para poderem preencher alguma outra especialização, mais um parafuso solto, enquanto deixa a cargo dos competidores organizarem a orgia da qual eles mesmos serão os primeiros a perder. Agora cada um deve compor o seu próprio roteiro e demonstrar a validade do mesmo em suas ações de composição e reação aos roteiros, seus e dos outros.
Otimização dos custos? Flexibilização do trabalho? Precarização da mão-de-obra? Terceirização dos serviços? O jogo é o enredo. Jogar é obrigatório. Quem não joga, não tem graça, não estimula nem se deixa estimular, portanto, não faz parte, é diferente, estranho, e pode representar um perigo ou ameaça à harmonia dos demais que participam ativa ou passivamente dos ‘jogos vorazes’ com ou sem “padrão fifa” de qualidade.

§ 6.
Nos Jogos Mortais da realidade,o pesadelo indica o “deserto do real”, criado pela vontade do fabricante, espécie de “anão feioso”, para usar um termo do referido W. Benjamin. Esse anão em offrepresenta a teologia surrada e maltrapilha que segue escondida, para não deixar ser vista e fazer de conta que está superada, por um sistema de pensamento liberal, laico e progressista.Modo dela se manifestar numa época marcada pelo uso das filosofias da história para justificar atitudes políticas e posicionamentos ideológicos dentro [e fora] da ordem tecnocrática.
O assassino é você, é ele, é ela, sou eu, nós. São os participantes do jogo que se matam, que se eliminam diante das necessidades criadas pelas circunstâncias em que são colocadas para competir, o que seria viver. A função de eliminar participantes, competidores, não é mais do morto-vivo, digo, do gestor, digo, do... Este cria os cenários e as circunstâncias para que os competidores se livrem do que lhes foi imposto para terem de superar. A vida não é mais algo para ser vivido, sentido. A vida é agora um jogo para ser jogado, com objetivo de ser superada.
Superar a vida: o que é isso? Só a mente dos desvairados psicóticos do nosso tempo consegue entender isso que não tem entendimento, por ser vazio desde o nascedouro. Na falta de sentido, criam sentidos para a falta de sentido poder fazer algum sentido.
Vejamos: o enredo não trata mais de passeios ou acampamentos, nem sonhos que viram pesadelos. Trata-se de um jogo, que é o que foi tornado a vida, o trabalho, o amor. As funções de eliminar foram transferidas para os participantes. Um exemplo disto está numa das cenas bizarras de Jogos Mortais, em que uma participante, com um mecanismo preso em sua cabeça, está prestes a acionar aquilo que irá explodir sua cabeça. Ela acorda ao lado de um homem, algemado, sem condições de escapar. Diante deles um aparelho que comunica a ambos a sua real situação, demonstrando logo que não se trata de um simples jogo, mas de suas próprias sobrevivências. A voz em off diz aos competidores – que não pediram para competir, mas que se veem obrigados a fazer isto –que a chave para abrir o cadeado e libertar a mulher está dentro da barriga do homem ao lado dela. Ela tem pouco tempo para decidir o que fazer, para tomar uma decisão: sair correndo do quarto e deixar a ‘bomba’ explodir somente ela, ficar no quarto e se explodir com o homem ao lado (um completo desconhecido) ou se salvar abrindo a barriga do homem, sem anestesia, para retirar a chave de dentro dele.
Dentro da situação ruim, matar é o que a personagem conseguiu fazer de melhor. A situação ruim, mais que isto, é horrível, para todos, até para o espectador da cena. Como assim, decidir? Eis a situação de decisão avaliada pelos erreagás feiosos que habitam os outros à sua atmosfera cinza triste: decidir é escolher entre o ruim e o menos pior. “Que situação desagradável você é capaz de infligir a si mesmo?” Eis o que parece se medir para a avaliar capacidade e mérito nas empresas – em todos os lugares geridos como empresa: ser capaz de provocar e de suportar, nos outros, as dores dos outros.
O que a personagem faz, mesmo a contragosto? Ela mata, não sem antes causar dor, sofrimento e aflição naquele ser humano que está ao seu lado, tão indefeso quanto ela, tão aterrorizado quanto ela, um completo desconhecido, mas que terá de sofrer a angustia de ter seu interior aberto e jogado para fora, a intimidade do seu corpo exposta para a garantia do “sucesso” de uma semelhante, que na realidade nem queria fazer o que “teve de ser feito” diante da normativa da circunstância em que ela foi despertada. Mas o fez. Por que? Porque foi treinada para agir em momentos e circunstâncias adversas, para tomar decisões que precisam ser tomadas. No fim, trata-se de deixar de se posicionar como sujeito que questiona aquilo que faz, depois de ter feito, para assumir a passividade a condição do objeto manipulado: fez, porque foi isto o que fizeram dela, para ela fazer.
O outro, neste caso, não é um oponente, um adversário, mas um igual nivelado por baixo, passivo diante das circunstâncias criadas corporativamente, um perdedor que vai “vencer”.O quê? O currículo escolar e da formação profissional passam a ser considerados um obstáculo a ser superado. De modo que professores e diretores são convidados a diminuir os níveis de exigência formal e aumentar os índices de criação tecnoreprodutivista como se estivessem numa empresa, e não numa universidade, fabricando componentes de sabão, de modo que os conteúdos estudados, com esforço, e assimilados para uma ou outra avaliação acabam podendo ser esquecidos logo em seguida,porque a conquista de um emprego para concorrer por melhores salários no mercado exige concentração e dedicação do sujeito, o que, do ponto de vista da flexibilização do trabalho, significa esvaziamento de conteúdo para facilitar a introdução de novos conteúdos a serem assimilados em trabalhos cada vez mais diferentes.
A mensagem é clara, sem forçar a barra, bem ao estilo corporativo: você é seu próprio adversário, é preciso se superar. Isto significa superar quem você acredita que é; deixar de crer em você, nos seus valores, nas intenções que guiaram sua conduta prática e intelectual até o aparecimento de tal circunstância corporativa. É a anulação total do indivíduo em nome da coletividade em disputa pela individualidade, competitividade e lucro.
Outra lição didática: a incerteza da vida diante da determinação corporativa. O trabalhador elimina o trabalhador para garantir um pagamento a mais pelo trabalho que ele já realiza? Não, o trabalhador elimina o trabalhador para garantir que não irá receber menos para realizar o mesmo trabalho de quem pode ganhar mais. Do começo ao fim o que se vê são derrotados, porque não existe vencedor nesse jogo corporativo. Todos os que começam a competir são nomeados desde já “vencedores”, só pelo fato de poderem competir.
Ao final de cada competição, ao final da superação individual dos ‘adversários’, a glória esquizofrênica de poder se sentir um verdadeiro ‘campeão’, só por ter conseguido vencer a si mesmo, quer dizer, só por ter conseguido superar todo um conjunto de experiências no tempo que constituíram a humanidade do homem e da mulher até o momento. Quem vence é quem consegue deixar de ser humano, o vencedor, nestes novos jogos corporativos é quem consegue se deixar ser desumanizado.
Não precisamos dizer que há muitos que se empenham nesta tarefa. Mas assim como a experiência junto a pequenos produtores rurais em Minas Gerais me permite aprender, um “fazendeiro é sempre um homem de fé” e deve acreditar no mistério, caso contrário, não suportaria a realidade inexorável da natureza sobre suas lavouras e animais. Também assim, creio, deve ser um professor, homem de fé, crente que o ser humano pode ser algo melhor do que o que tem sido feito dele, para ele, por ele através das determinações das circunstâncias criadas pela voz em off do fabricante de sentidos do mundo corporativo, que colonizou o mundo da vida e tornou a vida um emprego, com cronograma, metas, objetivos, custos, especulações etc. vida a ser vivida em tempo hábil e feliz – pois se não for assim estará sendo desperdiçada, vivida de forma errada e, por isso mesmo, infeliz.

§ 7.
Para espetáculo e gozo dos viciados nos efeitos narcóticos da Teoria do Capital Humano [equivalente à redução da humanidade do Homem a dados estatísticos favoráveis ao investimento em dinheiro], diretores, coordenadores e professores da Universidade Estadual de Goiás foram despertos do seu sono [dogmático] e acordaram atrelados a mecanismos introduzidos em seus corpos e não sabem como isso aconteceu.
A voz em off diz aos seus sentidos que devem fazer alguma coisa para que todos não se explodam com a bomba que está armada em suas cabeças. E eles vão, assim, meio assustados, meio sonolentos, tal qual vai quem acaba de acordar de um sono profundo, organizar os roteiros, elaborados gratuitamente, sem ônus para o seu empregador, só para poderem se mostrar eficientes aos olhos dos espectadores do espetáculo dos “rituais de sofrimento” que se tornaram a condição de empregabilidade e assalariamento dentro da UEG.
Em tempos de festa junina, eis o grande passo que os mais diretamente interessados na UEG estão ensaiando, o da engenhosa privatização dum espaço público para restrição dos que podem pagar para transitar dentro dele, inclusive para poder conseguir trabalhar nele.

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